segunda-feira, 17 de agosto de 2015

O Retrato

À Minha Filha Vânia (Lembranças)


Ela queria ir ao baile. Ao primeiro baile. Mil vezes desfilou uma vivacidade de quinze anos de lá para cá, frente ao espelho...  Rodopiou, cantarolou sons que iam desde os mais românticos vienenses, até os mais frenéticos e atuais.
   Rodopiou enrolada em lençóis brancos que refletidos no espelho logo se transformavam para ela em esvoaçantes vestidos. Antecipou minuto a minuto a noite que queria. A noite esperada veio e passou. Agora, dela possui lembrança que buscará muitas vezes repisar. Vânia faz culto à alegria. Na falta de algum presente se servirá até das já vividas. Ela é assim mesmo. É tudo isso: vibração, riso, vida querendo expandir-se.
    Para nós que a tudo assistimos, há agora o retrato lá sobre a estante de livros. Retrato que a mim alegra, entristece e deixa confundida.
    Nele, o tema nada contém de novo. É nada singular . É apenas o de uma adolescente sorrindo infindavelmente em seu vestido puro e alvo. Mas há o olhar e além disso o seu nariz minúsculo e petulante. Neles há algo que me prende e fascina.


    Chavão tão velho é escrever sobre retratos que falam. Não vou fugir a ele. Por que ser original se é justamente o que acontece? Cada vez que passo pela estante , nele está Vânia me chamando, dizendo e afirmando: “Viver intensamente! Movimentar-me consonante ao mundo que não para! Amor, alegria! É tudo o que eu quero. Para mim é neste instante que o mundo nasce, tem início!” Não resisto e sento-me frente ao retrato para melhor escutá-la. Mas logo tanto entusiasmo leva-me, num paradoxo, a ficar triste.
    Lembro-me precisamente pelo contraste que encerra, de outro olhar que há dias vi...
    Era um recorte de revista. Ali, uma cena de guerra, tão longínqua quanto brutal, servia bem ao sensacionalismo ou ao realismo , como queiram, do jornalista. Havia nele fotografado um menino paquistanês. Tão velho em idade quanto Vânia, 14 ou 15 anos, nada mais. Fazia parte de um grupo de fugitivos, repatriados de sua cidade nativa em escombros, para fazer lar agora entre repugnantes canos de esgotos...
    O olhar impressionava como o dela , embora absolutamente inverso. Nada dizia, nada contava. Olhar inexpressivo como se conduzido apenas pelo instinto de seguir o grupo. Como se houvesse feito justamente o contrário de Vânia. Ao invés de fazer o mundo renascer para si, já o tivesse enterrado, sem chance de sobrevivência, sem nem cogitar mais numa forma de vivê-lo. Olhar vazio de futuro. Incapaz de interrogar á tanta adversidade: Por quê?
    Olhar de menino sem revolta, pois o único viver que conhece é esse mesmo: uma sucessão de desditas que inexoravelmente vão se acumulando. Não imagina possa existir em outro lado dos continentes , juventude plena de vigor, esperanças e planos.
    Muitas vezes quando passo frente à estante, lá está teimoso, lado a lado com a radiosa figura de Vânia, o trágico adolescente paquistanês...
    Fico acabrunhada. Procuro então serenar-me. Tento fazer como aquela geração passada que, por falta de comunicações rápidas como as de agora, pouco sabia do que se passava longe, fosse China, Índia ou Paquistão. Quero ignorar. Restringir minha felicidade às paredes do lar, numa indiferença omissa.


   “O rapaz está tão longe-digo de mim para mim- e a garota que é minha está tão feliz” Não é possível aquietar-me. Não consigo por o limite de minha alegria em meus filhos, meus amigos, meu próprio país. Sou exigente. Quero nada menos do que a estabilidade da humanidade inteira.
    Confusa, aturdida, resolvo apelar para a esperança ainda intocada de Vânia que lá do retrato continua falando-me. Nariz petulante , posto para o alto como a desafiar-me afirma: Para mim toda a história passada já era... E seus olhos decididos vão repetindo: Já era... Já era...
     Nessa afirmação que ela e os jovens “salvos do incêndio” que se propaga ao mundo encontraram, parece estar a promessa de algo melhor e positivo.
     Lutas que colocarão depois Vânia face à face com ganâncias, negatividades, que sua atual ingenuidade nem pode ainda calcular, com certeza a esperam. Mas tenho uma intuição : Seja o que for que venha a enfrentar, a vitória já é dela.
    Nem em livros elaborados por filósofos e eruditos, onde tanto busco e procuro, achei mais esperança que neste seu retrato. Menina entusiasta e feliz, com muitos sonhos e propósitos, dançando sob olhar protetor de pais e irmãos... Menina segura de si, em condições de prometer-me muito. Prometer vencer o mundo. Pega-lo entre as mãos, tal como se fosse terra gasta e ressequida. Cultiva-lo amorosamente, semeando nele sua beleza e alegria. E, um dia ir dá-lo ao menino paquistanês finalmente desabrochado em flores, muitas flores de paz. 

Família

     Seres individuais que somos, podemos, contudo, ser agraciados tendo uma família biológica e outra que por não saber como defini-la vou chamar de “espiritual”.
     A família biológica desenvolve e troca afetos pela convivência amiúde. Com ela, experienciamos nossos mais importantes momentos de alegria e de tristeza. Compartilhamos nossas vitorias e nossos fracassos.
   A família biológica é rica em personalidades distintas. Seus membros em geral são de temperamentos diversificados.
  Nela, encontram-se elementos naturalmente afins, cujo entendimento se dá com facilidade, onde admirações mútuas acontecem. Porém, encontram-se nesta família também aqueles que parecem estar inseridos juntos num mesmo grupo, com a finalidade única, última, de, por um esforço mútuo, atingirem um princípio maior, misterioso, talvez sublime de unicidade entre seres. O relacionamento entre eles é um exercício de ajustamento contínuo para que a convivência harmoniosa se preserve.
    Porém, dentro da família biológica, aconteçam que divergências possam acontecer o próprio dividir vivências conjuntas, as lembranças das grandes datas familiares compartilhadas sempre gerarão um amor que falará mais alto no caso da família, como um todo, ser sacudida por alguma adversidade.



     Creio que o nascimento de crianças, suas presenças dentro da família biológica, terá sempre um grande peso aglutinador, pois a criança sempre é nela o objeto de afeto de cada um do grupo e torna-se mesmo quase como um objeto de culto agregador. Além disso, a criança sempre exige exemplos. Então, por ela, nos tornamos melhores.
     Estarmos inseridos no seio de uma família numerosa é uma das mais generosas dádivas que recebemos da vida.
     A família que chamo “espiritual” é um agrupamento cujos membros se atraem por interesses comuns. Sejam eles interesses religiosos, místicos, científicos, artísticos, filantrópicos. Existe já entre seus membros uma afinidade natural e supreendentemente pronta, estabelecida. Ela torna seus encontros muito prazerosos. O diálogo que flui fácil é uma constante neste tipo de grupo, pois sempre existe um tema comum para debate. Tal afinidade os faz reunirem-se assiduamente e serem solícitos para a necessidade de cada um.
     Como a família “espiritual” satisfaz nossas preferências individuais, nos tranquilizando, geralmente nos deixa mais aptos a um relacionamento harmônico com a família biológica, se qualquer dificuldade advinda das dificuldades do cotidiano e da diversidade de temperamentos entre o membro desta, se apresentarem.
     O melhor que nos pode acontecer é possuirmos ambas as famílias. Nossa individualidade estará assim sempre completamente assistida. Existem, porém pessoas cujo infortúnio é não possuir qualquer família. Penso que tal solitude deverá ser avassaladora para as emoções de alguém.
     As características que marcam cada um destes dois grupos a que podemos pertencer contribuem para a plena integridade do nosso ser. Assim, contar com ambos é então a felicidade maior que podemos obter.